quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Um pouco mais sobre Mercantilização

"Gostaria de destacar as particularidades de um campeonato de futebol, aquele de ..., o qual melhor definiria como um torneio de trabalhos forçados. Entre campeonato e copa, de 29 de agosto a 19 de dezembro (mais precisamente: em menos de quatro meses) as equipes que avançarem na copa vão disputar cerca de 27 jogos. Este número [...] de compromissos seguidos é mais adequado a equipes profissionais, nas quais os jogadores contam com o apoio de um staff de especialistas em medicina, nutrição e psicologia. [...] Daqui a não muito tempo, os campos estarão extremamente pesados por causa das chuvas.


Jogar a cada três dias não é fácil. [...] Em muitas partidas se veem situações de pouco brilhantismo, imprecisão e um lógico desgaste atlético. Ainda que nossas equipes não disputem a L..., sempre se vai a campo para vencer. E os eventuais vacilos da equipe são sempre reportados à diretoria e à cidade.


Não nos esqueçamos que, além do cansaço físico, existe também o psicológico. Os atletas que vão a campo são garotos de 18 a 20 anos, [...] Outro aspecto não menos importante é que, no momento em que são feitos os calendários do campeonato de ..., esquece-se que os dirigentes, massageadores, jogadores e técnicos pertencem ao mundo dos amadores.


Ou seja: disputar uma partida no meio da semana traz alguns problemas com o trabalho (é preciso pedir alguns dias de férias, alternar o turno, pedir um favor a algum colega etc). Além disso, alguns atletas frequentam a escola, muitos deles em fase de exames vestibulares. Para que se chegue a uma partida em condições decentes, muitas vezes são realizados treinos matutinos; isso significa que, não raro, esses meninos são obrigados a renunciar à escola de duas até três vezes por semana.


Certo de que, nos próximos anos, ter-se-á mais atenção no momento em que forem formatados os calendários do campeonato de ..., deixo as minhas mais cordiais saudações e o desejo de sorte para a sequência de sua difícil tarefa de dirigente.


Um profissional da área."



Pergunta, de que lugar essa carta é? Pode parecer que é de qualquer lugar do interior do Brasil. Mas não é. É do interior do Itália. Sim, a Itália, país membro da União Européia, além de contar com uma das ligas de futebol mais ricas do mundo. Times como a Juventus de Turim, a Internazionale e o Milan, de Milão, além de outros que estão num escalão inferior, mas ainda alto, como Fiorentina (Florença), Genoa (Gênova), Napoli (Nápoles), Lazio e Roma (ambas da capital), são conhecidos no mundo inteiro, não a toa algumas finais da Supercopa da Itália são disputadas na China. Lá, o bolo é ainda maior que no Brasil, mas sua divisão é ainda mais cruel. Por exemplo, Ibraihmovic, jogador do Milan, tem um salário de 9 milhões de euros (mais uma vez, nosso teclado não tem o símbolo do euro), enquanto o recém promovido Cesena possui uma folha salarial de 8 milhões, para os seus quase 30 jogadores. E estamos falando da 1ª Divisão. Tal abismo tende a ficar mais profundo conforme nós descemos. A carta acima é de um jogador da 4ª Divisão (extraída do blog Quattro Tratti, especializado em futebol italiano).


A Itália é um país cheio de contradições (como quase todos no planeta). A região Norte e Central é a mais rica do país, e não coincidentemente, lar da maioria dos times citados. O Centro-Sul, mais o Sul do país, icluindo as ilhas da Sardenha e da Sicília, são as mais pobres, não muito diferentes das periferias latino americanas, e são controladas por bandidos, no caso, a Máfia, que são extremamente cruéis, usando de suas armas, "prestígio" e ternos Armani. A desiguladade da divisão da renda se reflete no futebol, além de uma questão própria da Itália; o regionalismo. Lembrando, a Itália tem aproximadamente 150 anos como país unificado, o que é algo considerado recente na História. Isso explica algumas coisas. Como um time como a Salernitana, da 4ª Divisão, pode ter a capacidade de quase encher seu estádio, que tem capacidade para 37,000 espectadores. Bem, o Santa Cruz também fez o mesmo na Série D do Brasileiro, e além disso, a equipe de Salerno já esteve na Série A. Mas a maioria de seus clubes possui uma grande torcida, regional, é verdade. Enquanto isso, as equipes do Norte começam a conquistar torcedores em pontos cada vez mais distantes, homogeinizando padrões e aumentando a renda, enquanto os clubes regionais definham.


O capitalismo precisa lutar contra algumas tradições que podem servir de entrave a sua circulação, e o regionalismo e tradicionalismo no futebol são alguns deles. No caso do Brasil, que é um país de dimensões continentais, existem uma série de clubes considerados grandes, e somado a falta de competência das administrações, e também da sorte inerente ao jogo, podem aspirar ao título nacional. Na Itália, e em outros países europeus, isso não acontece. A briga fica entre aqueles times do primeiro escalão, e eventualmente, um do segundo chega. Isso acaba tornando a disputa do campeonato previsível, diminuindo seu prestígio, consequentemente, visibilidade, e consequentemente, lucro. Por isso a proposta dos grandes times da Europa de acabar com as ligas nacionais e criar uma liga comum européia. Isso poderia ser sinônimo de lucros a curto-médio prazo, e depois? É típico do capitalismo; em busca do lucro, demanda vários recursos, e quando estes começam a ficar escasos, tem de usar seus próprios recursos, como uma cobra, que morrendo de fome, começa a comer o próprio rabo. Isso explica a dívida de 778 milhões de euros do Manchester United.


Estamos vendo um momento crítico desse modelo de futebol, e o seu resultado é previsível, mas as consequências desse resultado, estas, no momento, são obscuras.

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