quarta-feira, 13 de junho de 2012

O Improvável no Futebol - O Haiti na Copa de 74


O que é o improvável? É consenso que improvável vai no sentido do que vai contra todas as probabilidades, o que é inesperado. No futebol, esses momentos não são raros, longe disso. Um time que não era considerado favorito conquistava determinado título, ou uma vitória contra um adversário a quem o mundo inteiro já dava o triunfo, além de momentos, tão somente momento, improváveis. Por alguns instantes, a ordem vigente é subvertida. A diferença entre essa fração de tempo e uma conquista é que a segunda ficará eternizada, enquanto a primeira possivelmente se perderá, ficando apenas para aqueles que a viveram ou a presenciaram. Atualmente, temos à disposição vários meios, para que possamos ver sempre que possível esses fatos. Mas, e se em algum momento não for mais possível vê-los ou ouví-los? Tudo o que restará será a memória, a que foi vivenciada e a que foi construída, baseada naquilo que os que presenciaram o fato contam. Mas como saber se é verdade ou não? Bem, na maioria dos casos, não saberemos. Porém, no futebol, temos os dois lados, e em algumas oportunidades, três (pra mais até); os dois lados adversários e um terceiro, expectador, que não torçe nem defende nenhum dos envolvidos, está lá apenas para ver, apreciar, e nesses casos, se surpreender com o desenrolar dos fatos.

E esse é o caso de hoje, que aconteceu há 38 anos atrás, mais especificamente, na Copa do Mundo de 74, na Alemanha. A partida  era entre Haiti e Itália (estranho isso, a Itália é pródiga em proporcionar momentos improváveis em Copas do Mundo), o resultado final foi o esperado, mas por alguns instantes, mais especificamente o 1º  tempo e alguns quebrados do 2º, o mundo do futebol teve uma supresa.

Antes de falar da partida, será necessário abordar o histórico dos dois times, sobretudo do Haiti, por quê qualquer um que acompanhe futebol conhece, mesmo que minimamente, a história futebolística da Itália. Sobre o Haiti, salientamos que a seleção não foi bem no Mundial, longe disso. Entretanto, podemos dizer que era algo esperado, ainda que a equipe fosse uma potência no Caribe, se destacando pelo seu futebol ofensivo, e temos de ressaltar um número considerável de atletas foi jogar no exterior após a Copa. Tendo isso dito, achamos que seja possível falar da seleção e do futebol do país. Até aquela Copa, as maiores conquistas do futebol haitiano foram um 4º lugar nos Jogos Pan Americanos de 59 e um título da Liga dos Campeões da CONCACAF pelo Racing Haïtien, equipe dominante do futebol local. Futebol que estava estagnado, diga-se de passagem, ao ponto de ficar sem realizar o campeonato nacional de 72 à 83. O último campeão foi o Don Bosco de Pétionville, que conquistou o primeiro título de sua história na até então última edição do campeonato nacional. Posto isso, poderia ser dito que as perpesctivas sobre o time haitiano estavam longe de ser as melhores, até mesmo em nível regional. O Haiti era uma potência na região, mas competia com outros centros emergentes, como Trinidad e Tobago, e com países relativamente tradicionais, como o México.

Para se classificar para a Copa, os haitianos tiveram primeiro que superar Porto Rico. Os dois jogos foram vencidos facilmente (7 x 0 em casa e 5 x 0 fora), e a vaga para o Mundial seria decidida em um torneio, que seria realizado no próprio Haiti. Possivelmente, este foi o desejo do ditador do país, Jean-Claude Duvallier. O ditador era popularmente conhecido como Baby Doc, ainda que usar qualquer derivado da palavra “popular” depois de seu nome seja de um contrasenso imenso. Jean-Claude “herdou” o governo de seu pai, François, o Papa Doc, ditador que governou até 71. Como todos os ditadores, Jean-Claude Duvallier  se esforçava para passar uma impressão de “normalidade” no país, afinal, nem todos os governos do mundo são como o dos EUA, em que basta dizer que se odeia o comunismo, a União Soviética, e naquele momento e região, Fidel Castro e Cuba, para que se pense que seu governo é legal e amado pelo povo.

Apesar de jogar em casa, as expectativas não eram das maiores. Como já dissemos, o futebol do país estava parado, logo, a única oportunidade dos atletas atuarem era pela seleção nacional, o que a bem de verdade acabou aumentando o tempo para preparação. A base da seleção haitiana eram o Viollete e o Racing Haïtien, enquanto o atual Don Bosco cedeu apenas 2 jogadores. O técnico Antoine Tassy não tinha muitas opções, e teve de confiar em um moleque que havia começado a jogar no ano anterior, no caso Emmanuel Sanon. No final das contas, a seleção Haitiana foi a líder do torneio-que-servia-como-eliminatórias da CONCACAF. Com 4 vitórias e apenas 1 derrota, que veio na última rodada, ante o México, quando a classificação já estava assegurada. De fato o desempenho do time foi notável, mas houveram reclamações em relação a arbitragens suspeitas. O ditador Jean-Claude queria passar a impressão de normalidade, mas também queria a vitória, e ele não era lá muito discreto. Em um jogo contra Trinidad e Tobago, 4 gols dos visitantes foram anulados. Como era de se esperar, nada foi provado, mas pelo sim, pelo não, o árbitro que apitou o jogo foi afastado do quadro da FIFA. Essas reclamações foram feitas fora do país, afinal, a presença dos Toutons Macouté (milícia paramilitar do governo, que tinha o aval de caçar todo e qualquer opositor, ou qualquer pessoa que não colaborasse com o regime) era mais do que intimidadora. Seria difícil explicar um “sumiço” de um estrangeiro, mas era algo complicado dizer isso pras delegações dos países visitantes. Falando estritamente de futebol, “Les Grenadiers” tiveram um bom desempenho em partidas que em que pelo menos não encontramos reclamações e suspeitas, com a surpresa do técnico Tassy com o desempenho de “Manno” Sanon, que foi o artilheiro do time na competição, com 5 gols.

E assim o Haiti ia pra Copa, que naquela época, contava com 16 seleções, e como o futebol estava bem menos globalizado que hoje, a polarização entre europeus e sul-americanos era imensa, portanto, era justo pensar que a seleção haitiana ofereceria algo próximo de nada na Copa. Tudo isso dá um significado ainda mais forte ao feito dos haitianos.

E entrando nesse tópico, falemos da Itália, que ao contrário dos haitianos possuía uma história ríquissima no futebol. A Itália contava com jogadores como o goleiro Dino Zoff, considerado um dos melhores do mundo. Além disso, os italianos tinham o zagueiro Giacinto Facchetti, o meia Sandro Mazzola e o volante Fabio Cappello (sim, o técnico), e no ataque, Gianni Rivera e Gigi Riva, jogador que ajudou o Cagliari em sua mítica conquista do Scudetto. Todos tinham o objetivo de conquistar o título, que havia escapado em 70, na final contra o Brasil. Além disso, o time italiano tinha uma marca impressionante; 1143 minutos sem sofrer gols, honrado a tradição do catenaccio.

Quando saiu o resultado do sorteio, que colocaram o Haiti e a Itália junto de Argentina e Polônia, aí sim viram que as chances dos caribenhos tinham se reduzido a menos que 0. De fato, foi o que aconteceu, mas também esperava-se bem menos deles, que surpreenderam ao jogar um futebol ofensivo, ao ponto de ser insensato, como os outros jogos mostrariam. Pelo menos o espetáculo foi bonito, ao contrário do que seria caso o time ficasse atrás. E antes que nos consideram “anti-retranca”, saibam que achamos que um time que jogo feio, mas de maneira vibrante, pode sim ser bonito, à sua maneira, é verdade, como a Irlanda na Copa de 90, o Paraguai em 98 e sobretudo a Grécia da Euro de 2004. Sobre os haitianos, eles simplesmente não sabiam jogar atrás, afinal, conquistaram tudo o que conquistaram até então atacando, então por quê mudar?
Seja como for, foi com esse cenário que o jogo ocorreu. Boa parte dos italianos pensava que enquanto Argentina e Polônia se matariam, sua seleção daria um salto passando por cima do Haiti, e acreditavam nisso pautados em fatos concretos. Como amantes do futebol, eles já devem ter aprendido que o futebol pode ser qualquer coisa, menos algo que pode ser lido através de fatos concretos. “Mas era o Haiti, ora pois!”, Temos certeza que esse pensamento passou pela cabeça dos tifossi (mas duvidamos que a expressão “ora pois” tenha sido a utilizada, mas foi a melhor que encontramos). Podemos dizer que se não fosse o Haiti (ou qualquer outra equipe com histórico semelhante) não seria uma surpresa ou um fato improvável.

Assim sendo, a partida ocorreu no dia 15/06/1974, às 18:00, no estádio Olímpico de Munique, com um público de 53 mil pessoas. Enquanto os italianos que não puderam ir para a Alemanha assistiam ao jogo no mesmo fuso horário, para a população haitiana, a partida passava ao 12:00 em Porto Príncipe, capital do Haiti. De fato os haitianos tinham preocupações bem maiores que um jogo de futebol, mas acreditamos que eles devem ter dado uma espiada na partida.

Antoine (9), Vorbe (7) e Jean-Joseph (12) cercam um jogador italiano
Sem mais delongas, vamos para a partida. Muitos poderiam pensar que Les Rouge et Noir estavam intimidados com o fato de enfrentar os bi-campeões mundiais, e esse podia ser visto na fala de um de seus principais jogadores, justamente o que ficaria marcado naquela partida; “todo mundo perguntava quem poderia bater Dino Zoff. Os jornais falavam em jogadores europeus ou sul-americanos, mas ninguém pensava que um Haitiano poderia fazer isso. Isso me irritou por quê eu sabia que poderia fazer isso”, era o que Emmanuel Sannon dizia. Bem, quando o juíz apitou o início da partida, ela começou de uma maneira inesperada; com a Itália atacando. O ataque do Haiti, principal arma do time, pouco fez contra a defesa italiana durante o 1º tempo. Quem apareceu mesmo foi o goleiro Françillon, com defesas surpreendentes, verdadeiros milagres, que serviram como um prenúncio, avisando que as coisas não seriam tão fáceis como todos pensavam. Com o passar do tempo, os haitianos começaram a sair um pouco mais, exigindo algo de Zoff, enquanto Françillon continuava fazendo milgares. Nessa toada, o 1º tempo acabou empatado, o que deve ter sido encarado como um lucro imenso por Tassy. Definitivamente, os 45 minutos iniciais terminarem em um empate sem gols foi algo inesperado, mas todos ainda estavam tranquilos, afinal de contas, Françillon se desdobrou debaixo da meta caribenha, e seria questão de tempo até que fosse vazado. De toda maneira, acreditamos que o pnsamento geral é de que o goleiro continuaria a operar milagres e o placar seria mais apertado que o esperado.

Com isso em mente, as duas equipes voltam para o 2º tempo, e logo no começinho, Fachetti tenta um pequeno lançamento, que acaba interceptado não se sabe por quem. Alguns dizem que foi Andre, outros afirmam que foi Bayonne, e não são poucos que falam que o jogador era Desir. O que se sabe com certeza é que a bola cai no pé do meia Vorbe, que achou um raro buraco na defesa italiana, dando um passe preciso para Sanon, surpreendendo o marcador, Cappello. Manno vence no corpo a corpo Spinosi, que ainda tenta puxar sua camisa, ficando cara a cara com Zoff, goleiro que estava a mais de 2 anos sem sofrer gols. A situação exigia colhões, e Sanon foi pra cima de Zoff e deu um corte rápido e seco. O arqueiro, quando viu que o atacante haitiano ia embora, ainda fez um movimento pra tentar pegá-lo, mas não deu; Haiti 1 x 0 Itália. Tudo em 3 toques, todos conscientes, todos perfeitos. Nas transmissões de TV dava-se pra ver um sujeito estupefato, sem acreditar no que acontecia, além é claro, da delagação haitiana vibrar como nunca havia-se visto.

Auguste e Riva duelam por uma bola
Depois do susto, os italianos trataram de acordar e em 26 minutos acabaram com a festa haitiana, com gols de Rivera, Benatti e Anastasi. Todos os gols foram petardados ignorantes, que talvez nem o Super Homem pegaria, exceto o de Benatti, que contou com um desvio providencial de um zagueiro, que assim como no lance do gol haitiano, ninguém sabia quem era. No restante da Copa, a defesa do Haiti demonstrou possuir a capacidade de levar vários gols em um curto espaço de tempo; levaram dois da Argentina em 3 minutos, e incríveis 5 gols em 17 minutos, contra a Polônia. Em se tratando de números, o Haiti só não foi pior que o Zaire (atual República Democrática do Congo), mas números são apenas números, e ainda que digam coisas importantes, não são absolutos. Os haitianos voltaram pra casa em clima de festa, com a população, que conseguiu um tempo e que deixou de lado por alguns instantes os problemas do país, mais do que satisfeita com o desempenho da equipe. Muitos dos jogadores foram contratados por times estrangeiros, a maioria para times dos EUA, já pro futebol europeu, vimos os casos do goleiro Françillon, que ficou na cidade que o consagrou, Munique, mas do lado 1860 München, e Sannon, que foi para o futebol belga, no Germinal Beerschot. Como já ressaltamos, o país passava por um período difícil, tanto na política, com a ditadura de François Duvallier, como na economia, vítima do imperialismo. Sair do país não era lá um mau negócio, e era algo compreendido pela população, que não via aqueles que foram embora como "traidores", ou qualquer coisa do gênero.

Zoff e Sannon
Aquela foi a primeira, e até o momento última, participação em Copas do Mundo do Haiti. Nem os 100 jogos e 47 gols de Sanon pela seleção ajudaram o país a se classificar de novo, ou a conseguir outra glória, e muito disso passava pela já referida suspensão do campeonato nacional (1972-83), além é claro da própria situação do país em si. Apesar do auge do futebol haitiano ter se dado durante o período ditatorial, não encontramos nenhuma informação de que em algum momento os jogadores, ou o próprio futebol, foram perseguidos e discriminados pela população.

 Após encerrarem a carreira, os jogadores que não conseguiram sair do país passavam por uma situação financeira difícil. Somente em 2008 os atletas, e as famílias daqueles que já faleceram, passaram a receber uma ajuda. Muito dessa ajuda foi motivada pela mobilização causada pelo falecimento de Sanon, que não resistiu a um câncer no pâncreas.




Pode-se dizer que Sanon foi aclamado pela população como o melhor jogador haitiano da história, e seu gol em 74 é lembrado até hoje, e todos o descrevem exatamente como o próprio jogador fala; “Com meu ritmo, você não pode me deixer com só um zagueiro, mas foi isso que aconteceu. Eu estava no mano a mano com Spinosi. Eu recebi um passe do Vorbe. Eu venci o zagueiro com minha velocidade. Mano a mano com Zoff, e o gol estava todo aberto. Eu finji que ia pra esquerda, mas eu fui pra direita. Eu o bati, e o rolei a bola pra rede”.

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